terça-feira, 24 de junho de 2014

O Homem Duplicado (Enemy) - Denis Villeneuve


O diretor canadense Denis Villeneuve soube escolher um bom desafio: adaptar a obra de José Saramago para o cinema.

Algumas obras de Saramago tem muita ação e construção de personagem e clima, mas não facilmente transponíveis para o cinema.


Fernando Meirelles já havia tentado em Cegueira e também sem chegar às profundezas do romance.

Villeneuve começa a trama de O Homem Duplicado muito bem, construindo o protagonista de maneira lacônica e instigante.


Com uma fotografia, decupagem e montagem que em poucas cenas já nos faz sentir o tédio, o incômodo, a perturbação, a riqueza da personagem.


A construção temporal imprecisa também contribui para nossa confusão e mergulho em certo labirinto.

Mas logo esse potencial vai se esvaindo. A boa interpretação de Jake Gyllenhaal não traz muitos crescentes. As cenas começam a se repetir, a fotografia e direção de arte cansam de tão monocromática que é a paleta e a pontuação da trilha extremamente redundante empobrecem a trama.


Uma história na qual todas as cenas são preparadas com acordes graves acaba deixando de nos instigar.

O duplo que surge causa suspense e estranhamento, mas não atinge uma profundidade psicológica e nem tampouco traz surpresas.

(Não vai no caminho de obras mais interessantes como O Clube da Luta ou Cidade dos Sonhos). Parece fazer mais jus ao seu título original - Enemy - sem querer nos provocar aprofundamentos.

As explicações que ficam no ar não nos instigam como o curta de Juliana Rojas, já comentado aqui

Ou ainda em obras que não tratam de duplos, mas que parecem ter sido inspiração para Villeneuve: as cenas do clube secreto nos remetem diretamente a De olhos bem fechados - também comentado aqui - e a cena final também pareceria caber em um filme de Kubrick ou de David Lynch.

O filme parece querer trazer questões além, que nos suscitem a dúvida de se esse duplo é real ou projeção, do quanto nossas dúvidas e diálogos internos podem acabar em esquizofrenias (bem tratada na desafiadora adaptação de Lav Diaz para o Crime e Castigo de Dostoievski, comentado aqui).

O homem duplicado termina sencionalista, sem se aprofundar na psicologia.


Tampouco dando dinamicidade às ações e derrapando em um desfecho muito pretensioso, que não se sabe se metafórico, de realismo fantástico, psicanalítico ou de um poético que não ecoa.

segunda-feira, 23 de junho de 2014

Dominguinhos - Joaquim Castro, Mariana Aydar e Eduardo Nazarian


A música é um dos reconhecidos legados da cultura brasileira, por isso temos visto se multiplicarem os filmes sobre nossos grandes artistas.

Há diversos tipos de filmes e abordagens, desde os que recriam a história dos artistas em ficções, como Cazuza - o tempo não para ou Somos tão jovens e o retrato de Renato Russo e seus companheiros de Brasília, recém comentado aqui.

Também as versões documentais, como aqueles que se lançam sobre o material como Uma noite em 67;

Ou há os que fazem espécies de longas reportagens sobre o artista, como Raul - o início, o fim e o meio Itamar Assumpção em Daquele Instante em diante ou Loki - Arnaldo Batista ou sobre um "coletivo", como Lira Paulistana, todos comentados aqui.


Há ainda os que tentam recriar a atmosfera do momento como Tropicália, também comentado aqui.

Entretanto, há ainda um outro jeito de documentar um artista, uma maneira sutil e poética que os jovens cineastas Joaquim Castro, Eduardo Nazarian e Mariana Aydar captaram.

Dominguinhos começa com imagens poéticas que tentam reconstruir sons e imagens da infância do artista, sem nenhuma descrição ou depoimento. A narração é puramente audiovisual e parece se aproximar do artista e sua obra com muito mais força do que a de qualquer palavra sobre ele.


Em meio a essa construção poética, cenas de shows e de bastidores com Dominguinhos.


Algumas fotos e alguns depoimentos ajudam a reconstituir um pouco da biografia, sem grande rigidez cronológica, deixando claro que a intenção não é tanto a narrativa mais informativa (ao menos não racionalmente). 


A narrativa parece mais sensitiva, nos aproximando mais da obra e através dela, aí sim, chegamos ao músico.

Sua arte pouco a pouco ganha vida no universo que os cineastas retratam: o sertão, o céu, a flora...


E transborda lirismo na pessoa e nas canções.


Talvez alguns excessos de construção sonora e imagens poéticas, mas nada que comprometa.


Pérolas como parcerias suas com Luiz Gonzaga em cenas antológicas entre os dois (como o "repente de xaxado").

Ou uma longa e poderosa lista incluindo Gilberto Gil, Gal Costa, Elba Ramalho, Hermeto Pascoal, Djavan.

Ou, em uma das cenas mais bonitas do filme, com Nana Caymmi. Emoção indescritível, de uma gravação que vale a pena conhecer (de música lindíssima importante de ser lembrada). 

A construção despretensiosa, em cenas singelas aos poucos vai nos tomando pela poesia ao mesmo tempo simples e profunda de Dominguinhos.

Que registro mais justo poderia ser feito ao artista?


domingo, 22 de junho de 2014

Somos tão jovens - Antônio Carlos da Fontoura


A década de 80 foi de grande agito em Brasília. Desde a consolidação que teve a cidade após algumas décadas de sua construção, passando pelo palco que se tornou na mudança de regimes (da ditadura para a demoracia) até sua movimentação cultural, fortemente simbolizada pelos grupos de rock ali formados.

Instigante documentar e contar a história das turmas de onde surgiram bandas como Paralamas do Sucesso, Capital Inicial, Ira e, claro, Legião Urbana.

Um dos porta-vozes dos adolescentes brasileiros, Renato Russo foi um dos protagonistas desse movimento do Distrito Federal.

O diretor Antônio Carlos da Fontoura foi bastante feliz ao buscar esse tema para ficcionalizar, mas não em sua realização.

Somos tão jovens tem problemas de estrutura desde o roteiro e não consegue nos aproximar de seu personagem. 

O Renato retratado não tem conflitos e sonhos específicos. Vemos algumas de suas crises de juventude, mas nenhuma com muita força.

Renato tem uma doença, é temperamental, tem dificuldade de se relacionar, tem poucos amigos, quer montar uma banda, mas o que mais?


Onde estão seus grandes sonhos? O que quer com sua arte? O que faz da sua vida?

Diferente de Cazuza - O tempo não para, de Sandra Werneck e Walter Carvalho, não vemos um cotidiano carismático do protagonista e nem ambições e ideais expressos no encadear das cenas, tampouco vemos uma grande atuação como a de Daniel de Oliveira.

Fontoura tenta dar conta dos principais fatos da juventude de Renato, traz dados biográficos e cronológicos, salpica alguns refrões de suas músicas mais conhecidas, mas não vai além em nada.

Até em Faroeste Caboclo, já comentado aqui, conseguimos ver mais do olhar de Renato e ter mais do seu entorno retratado, há mais contexto do país e da cidade ainda que em uma história bastante específica.

Em Somos tão jovens os diálogos são extremamente pueris (passando do limite juvenil, pelo qual poderia se desculpar pela ingenuidade e rasidade);

E a direção de atores também afasta completamente o público do filme: não há verdade no que é encenado - talvez com exceção de Laila Zaid, os atores são exagerados.

Renato é colocado não como a pessoa de temperamento forte e trejeitos que conhecemos, mas absolutamente estriônico, desperdiçando a semelhança física e vocal de Thiago Mendonça.

O filme não cativa em nenhum quesito e não ganha ritmo em nenhum momento.

Acaba desperdiçando uma grande história, resvalando no clichê e no brega e não fazendo jus ao personagem que retrata e nem às músicas que relembra...   

segunda-feira, 2 de junho de 2014

O Passado (Le passé) - Asghar Farhadi


Após o sucesso de A Separação, já comentado aqui, o iraniano Asghar Farhadi lança agora O Passado.

Novamente um casal discute uma separação e a história vai sendo apresentada por camadas. Diferentes pontos de vista sobrepostos que resultam na complexidade da trama.

Ahmad volta do Irã para encontrar sua ex, a francesa Marie, e assinarem o divórcio.

Há silêncios incômodos e diálogos truncados entre eles, sentimentos que parecem estar escondidos e que esperamos virem à tona. Construção que nos faz intuir que há muito mais história entre eles do que os minutos que acompanhamos ao longo do filme.

O mérito de Farhadi é nos instigar a preencher essas lacunas. Com personagens profundamente humanos e diálogos realistas, sensíveis e vigorosos, vamos sendo tragados a cada cena para perto dessa família (ou ex-família ou futura família).


(Sem falar nas cenas com as crianças que são um mérito a parte!).

Marie já está envolvida em uma nova relação, porém sua filha mais velha, de um relacionamento anterior ao casamento com Ahmad, não aprova.

O filho de seu novo namorado também não se sente totalmente a vontade nesta nova configuração. E todos tem que se esforçar pra encontrar seus espaços e terem voz.

Ahmad já não faz mais parte da família, mas se vê no meio de um turbilhão de acontecimentos: gestações, traições, tentativas de suicídio, imigrações, brigas, mentiras, revelações...

Muitos conflitos densos e bem desenhados. 

Talvez com alguns desequilíbrios: conflitos um pouco excessivos a partir da segunda metade do filme, personagem de Ahmad desaparecendo muito da trama ao final, ou a personagem de Marie.

A personagem (que rendeu um prêmio em Cannes à atriz Bérénice Bejo, vista anteriormente por aqui em O Artista - também comentado no blog) é a com menos nuances. Se mantém sempre aflita e rude, não oscila em doçuras ou demonstrações de fragilidade, como os demais, e acaba ficando mais antipática e menos tridimensional.

(Será que se Marion Cotillard não tivesse desistido de fazer o filme na última hora a personagem seria diferente? Será que instigaria tanto quanto sua personagem de Ferrugem e Osso? - um dos grandes filmes de 2013 comentado aqui).

Apesar dessa carência, as personagens em geral são muito bem construídas: intensas, sóbrias, precisas.

Bom roteiro, bom ritmo, bom elenco (das crianças, passando pela jovem Pauline Burlet, que já havia sido vista em Edith Piaf, o iraniano Ali Mossafa ou o francês Tahar Rahim - protagonista de O Profeta - também comentado aqui).

Apesar de qualquer porém, O Passado é um ótimo filme, muito acima da média. Desses que não se vê com tanta frequência e que se agradece quando aparece.