sexta-feira, 24 de outubro de 2014

Leviatã (Leviathan) - Andrey Zvyagintsev


O diretor russo Andrey Zvyagintsev já havia mostrado seu talento na construção de personagens densos e instigantes em filmes como O Retorno e Elena, já comentados aqui.

Agora Zvyagintsev nos apresenta sua versão para o mito de Leviatã, monstro com várias passagens por diferentes culturas e simbologias, por exemplo a do demônio da inveja.

Em uma pequena cidade de uma bela Rússia entre montanhas e lagos, vive o mecânico Nikolai e sua família. A vida humilde e tranquila em que vivem já começa ameaçada por um despejo.


O amigo de infância Dmitri, advogado atuante em Moscou, vem então para tentar socorrê-lo.


A situação parece tranquila, mas aos poucos os fatos vão ganhando proporções maiores e mais delicadas.

Quem tenta despejar Nikolai é um governante local, poderoso e influente graças à sua cobiça e falta de escrúpulos.

Fazendo lembrar o universo de O Idiota - recém comentado aqui - e reforçando a ideia de crise pela qual passa a Rússia em sua frustração pós revolução e tentativas de um regime socialista e que a levaram a um mundo de desigualdades, corrupção, desamparo e violências de toda sorte.

Nikolai passa a contar apenas com a ajuda de Dmitri, mas o desejo entre ele e a mulher de Nikolai também ruem essa relação.

Toda a vida de Nikolai parece ir sendo pouco a pouco devorada (por Leviatã?), o deixando só e miserável e parecendo não haver como escapar de um fim trágico.

A história muito bem construída entre idas e vindas, revelações pouco a pouco feitas e tramas de interesses diversos (desde o desejo de inércia pacata na casa em que sempre viveu a família de Nikolai e onde ele pretende passar o resto de sua vida, passando pelo desejo do amigo por sua esposa, os desejos conflituosos de seu filho adolescente, até o desejo de domínio desenfreado do governante que tira a casa de Nikolai) mostram uma narrativa primorosa - e merecedora do prêmio de roteiro em Cannes.

A decupagem e a construção dos espaços (os construídos - e destruídos - ou os naturais), imagens, sons e ritmo precisamente trabalhados são também qualidades do filme.

Mas um dos destaques é sem dúvida o trabalho de atores. Seja pelo protagonista vivido por Aleksey Serebryakov, de Cargo 200, por exemplo, também comentado aqui;

O adolescente que interpreta o filho, Vladimir Vdovichenkov que interpreta o amigo ou Elena Lyadova que interpreta sua mulher: uma das personagens mais misteriosas e densas do filme.

A maior qualidade de Leviatã não é da história construída pelo que é dito e mostrado, mas pelo que fica para ser revelado. As lacunas, os silêncios, as angústias etéreas.

terça-feira, 21 de outubro de 2014

O Idiota (Durak) - Yury Bykov


O jovem diretor russo Yury Bykov apresenta seu terceiro longa, O Idiota, vencedor de quatro prêmios no Festival de Locarno, na Suíça.

A tradução do título no Brasil já nos faz pensar na tradição cultural do país e na obra que Dostoiévski que trata sobre o confronto de um homem e seus valores com a sociedade em que vive.

O protagonista do filme aqui, Dima, é um funcionário público que vive precariamente tentando concluir seus estudos de especialização em engenharia e assim conseguir uma promoção. 

Os conflitos de sua situação já começam na casa em que mora com a mulher, o filho pequeno e os pais. Ali vemos o jantar humilde, a casa suja, decadente e amontoada e acompanhamos a discussão da mãe que questiona o pai por sua trajetória extremamente ética e  honesta e que por isso não possibilitou nenhuma melhoria na família.

O filho se mostra bastante solidário ao pai e o apoia em ações como do reparo do banco da rua (já antecipando a fragilidade da administração pública).

Também vai sendo dado o tom do filme, com atores de expressões fortes, planos longos ressaltando silêncios e paisagens, diálogos extensos e que cada vez mais ficam didáticos e até esquemáticos, ótima direção de arte e som, e narrativa e montagem que vão cruzando as diferentes personagens.

Após essa apresentação, Dima é chamado para uma ação no trabalho, e tentando um reparo em um prédio na periferia da cidade, descobre problemas estruturais que ameaçam a estrutura do prédio.

Ele tenta voltar ao seu cotidiano, mas a preocupação com as centenas de moradores que correm risco de vida com o possível desabamento do prédio não o deixa em paz. Ele vai em busca dos administradores da cidade e aí o filme passa a fazer um desenho didático de como funciona a política local.

Corrupção, egoísmo, violência, ganância são alguns dos podres que vão sendo revelados.

Num limiar entre o realismo das cenas e da alegoria dos diálogos, Bykov denuncia uma situação lamentável na Rússia.

Sempre ao lado de Dima, mas numa narrativa racional que não nos deixa aproximar de seus sentimentos, acompanhamos sua angústia e percebemos a gravidade da podridão do sistema político local onde todos estão com comprometidos com roubos, mentiras e descaso com a população.

Mesmo o povo acaba se limitando a preocupações mesquinhas e se aproveitam uns dos outros, comprometendo até mesmo os laços familiares.

A violência é generalizada: a precariedade embrutece as pessoas, não há solidariedade, nem se entende qualquer generosidade. Há desconfiança de todos com todos e descrença com as boas ações.

O bem é visto por quase todos como uma idiotice e aqueles que o praticam não tem forças e podem sucumbir tragicamente.

Filme de desesperança na sociedade mas de esperança em um bom novo cinema de denúncia.


quinta-feira, 16 de outubro de 2014

Videogramas de uma Revolução (Videogramme einer Revolution) - Harun Farocki e Andrei Ujica


Os documentaristas Harun Farocki e Andrei Ujica desenvolveram uma narrativa a partir de um precioso material de registro do levante popular que depôs o ditador Nicolau Ceausescu do governo da Romênia em 1989.

Em um momento de importantes desdobramentos da Guerra Fria e com a presença cada vez mais intensa do audiovisual na vida das pessoas, Videogramas de uma Revolução é um importante ensaio com sons e imagens.

Mais do que a qualidade dos registros de transmissões televisivas, câmera amadoras e da narração e montagem que a amarram, a relevância está pelo audiovisual se tornando uma ferramenta política e um dos instrumentos de maior inserção na sociedade.

O filme dialoga tanto com importantes reportagens de TV de acontecimentos históricos (podendo inspirar filmes como Dias Verdes, de Hana Makhmalbaf), mas dialoga principalmente com as transmissões ao vivo e a relação que se traça entre o real e a transmissão do real.

O que fica de mais interessante do filme é a maneira como o audiovisual passa a ser o discurso da verdade e como os fatos reais vão se tornando espetáculo.

Assim ele pode dialogar com filmes políticos, mas dialoga também com a cobertura da morte da Princesa Diana;

Com o ataque ao WTC ou mesmo com o processo eleitoral brasileiro (ou de qualquer país).

Videogramas de uma Revolução já começa com um depoimento de uma mulher ferida no hospital: para ela é mais importante o registro da fala do que as palavras que vai usar. 

E ao longo da narrativa, a maneira como se torna um dos pontos mais estratégicos a tomada da TV pelo povo e todas as declarações e transmissões feitas, faz com que o filme reverbere muito além do final do século XX, que ainda ecoe em tempos de reality shows e outros espetáculos midiáticos.

quarta-feira, 15 de outubro de 2014

Viagem à Itália (Viaggio in Italia) - Roberto Rossellini


Depois de sua estreia como um dos grandes nomes do neo-realismo italiano em obras como Roma, Cidade Aberta e Paisà, Rossellini lança em 1954 Viagem à Itália.


O filme fala da crise na vida de um casal despertada pelo ambiente distinto ao da rotina do casal.


A Itália do filme faz o casal ver como se acomodoram em sua relação sem terem atenção um com o outro.

Porém, ao se olharem verdadeiramente, a primeira reação é de estranhamento, ao ponto de se rejeitarem e tomarem caminhos distintos: Katherine (vivida por Ingrid Bergman) quer apreender ao máximo da cultura italiana: museus, escavações, eventos...

Já Alexander (vivido por George Sanders) não se identifica com o lugar e apenas nas pessoas e em sua inclinação para diversão se sente acolhido.

Uma trajetória de atritos, mas que os leva a uma reflexão da relação. 

Esperamos pela separação em parte com pesar, mas em parte com alívio pela possibilidade de caminhos mais harmônicos para cada um.


Assim o final fica ambíguo entre a conciliação e certa submissão da personagem feminina.

Rossellini ganha na densidade de seu tema e sua discussão e na bela construção de personagens e do espaço que faz, mas perde em um ritmo e decupagem mais convencional e perde também por não ousar mais no roteiro e no desfecho de sua narrativa.

segunda-feira, 6 de outubro de 2014

O Homem com uma Câmera (Chelovek s kino-apparatom) - Dziga Vertov


Vertov é um dos grandes nomes do cinema russo, em seu experimentalismo nas primeiras décadas de vida do cinema, ele foi um dos mais autênticos e irreverentes artistas na construção da linguagem da sétima arte.

Em seus estudos procurou estabelecer um compromisso com a verdade, tentando direcionar a câmera como a seus próprios olhos (cine-olho - kinoks).

Entretanto, o trabalho que ele faz de montagem nesse filme parece muito mais precursor de filmes experimentais, videoartes e VJs do que de documentaristas em busca de um registro do real e do cotidiano.

Em O Homem com uma Câmera, Vertov faz registros do cotidiano da Rússia nos anos 20: máquinas, operários, carros, pedestres, prédios, fábricas, trabalhadores, dançarinas, esportistas...

O discurso se cria pela sobreposição de imagens, sem um discurso muito organizado e linear. É pela semelhança e contrastes que vão se tirando sentidos e se construindo uma narrativa.

Tão rico, ousado e criativo que segue influenciando cineastas e se reflete em obras como Tempos Modernos de Charles Chaplin;

Koyaanisqatsi de Godfrey Reggio, Nós que aqui estamos por vós esperamos de Marcelo Masagão, entre tantos outros, incluindo videoclipes, videoinstalações, comerciais publicitários...

Apesar de retratar um momento e um povo muito específicos, Vertov parece absolutamente universal e atemporal, mostrando sua maestria na orquestração de imagens!

domingo, 5 de outubro de 2014

A Invenção de Hugo Cabret (Hugo) - Martin Scorsese

O grande nome do cinema americano Martin Scorsese soube escolher bem um nome do cinema mundial digno de homenagem. George Méliès foi sem dúvida um dos cineastas mais inventivos e talentosos do início do cinema (e até antes disso, nas máquinas do pré-cinema).

Seu universo lúdico e de grande beleza estética tinham muito potencial para explorar uma aventura juvenil como sugeria a proposta de adaptação do livro de Brian Selznick: A Invenção de Hugo Cabret

Entretanto algumas escolhas e falta de ousadia resultam em um filme morno, a história por trás da homenagem é fraca, a conexão com o personagem de Méliès, representado pela sua situação no fim da carreira (falido e frustrado) não seguram a história.

O protagonista, órfão num misto de melancolia e curiosidade, é sem graça (faz lembrar um pouco a adaptação de A Fantástica Fábrica de Chocolate de Tim Burton que também peca por não temperar o menino que leva toda a trama).

Esse órfão, que após a morte do pai tenta seguir na arte dos consertos e invenções, se dedicando a consertar um boneco a quem ele quer dar vida, numa busca a dar vida ao seu próprio pai. 

E a vida que consegue despertar descobrindo e desenterrando a história do próprio Méliès que vive anonimamente em uma relojoaria numa estação em Paris é uma boa premissa.

As soluções estéticas do filme também são boas, tanto que renderam 5 estatuetas do Oscar, entretanto com um roteiro tão fraco fica difícil se manter instigado pelas Invenções de Hugo Cabret.



Fiquemos com A Viagem à Lua e outras pérolas resgatadas de Méliès para assim termos a dimensão desse grande cineasta!

sexta-feira, 3 de outubro de 2014

Estorvo - Ruy Guerra


Baseado no romance homônimo de Chico Buarque, Ruy Guerra cumpre o desafio de fazer um filme absolutamente lírico.

Em Estorvo, acompanhamos o protagonista através do seu olhar: sentimos seus incômodos, vemos as outras personagens com as distorções de seu ponto de vista e vamos sendo levados sem objetivos claros, num fluxo de pensamentos e acontecimentos.

Tudo tem a imprecisão da subjetividade: dos diálogos em falas repetidas, passando pelas lentes exóticas, pelos sotaques ou nas elipses de ações.

A trama faz lembrar outras obras em que os personagens são um pouco vítimas das circunstâncias e não tem objetivos claros, como O Estrangeiro, de Camus.

Aqui também não entendemos muito bem os fatos, mas ficamos totalmente imersos no clima e ao lado desse personagem carismático e intrigante.

O protagonista é vivido pelo cubano Jorge Perugorría, astro do ótimo Morango e Chocolate de Tomás Gutiérrez Alea e Juan Carlos Tabío.

O cubano Perugorría traz um sotaque de português de Portugal e se mistura a vozes brasileiras falando português, espanhol e outras misturas.

O filme às vezes esbarra um pouco na caricatura e fica um pouco datado pela direção de arte e atuação, mas o lirismo fala mais alto.

Não há precisão de tempo, espaço, local e muitas vezes nem mesmo da imagem, reforçando que importa menos a lógica dos acontecimentos e muito mais as sensações.

Como em poemas, como em músicas, como em videoclipes, mas tão raramente em longas-metragens.


Apenas um mestre como Ruy Guerra, autor de obras-primas como Os Cafajestes e Os Fuzis