segunda-feira, 6 de outubro de 2014

O Homem com uma Câmera (Chelovek s kino-apparatom) - Dziga Vertov


Vertov é um dos grandes nomes do cinema russo, em seu experimentalismo nas primeiras décadas de vida do cinema, ele foi um dos mais autênticos e irreverentes artistas na construção da linguagem da sétima arte.

Em seus estudos procurou estabelecer um compromisso com a verdade, tentando direcionar a câmera como a seus próprios olhos (cine-olho - kinoks).

Entretanto, o trabalho que ele faz de montagem nesse filme parece muito mais precursor de filmes experimentais, videoartes e VJs do que de documentaristas em busca de um registro do real e do cotidiano.

Em O Homem com uma Câmera, Vertov faz registros do cotidiano da Rússia nos anos 20: máquinas, operários, carros, pedestres, prédios, fábricas, trabalhadores, dançarinas, esportistas...

O discurso se cria pela sobreposição de imagens, sem um discurso muito organizado e linear. É pela semelhança e contrastes que vão se tirando sentidos e se construindo uma narrativa.

Tão rico, ousado e criativo que segue influenciando cineastas e se reflete em obras como Tempos Modernos de Charles Chaplin;

Koyaanisqatsi de Godfrey Reggio, Nós que aqui estamos por vós esperamos de Marcelo Masagão, entre tantos outros, incluindo videoclipes, videoinstalações, comerciais publicitários...

Apesar de retratar um momento e um povo muito específicos, Vertov parece absolutamente universal e atemporal, mostrando sua maestria na orquestração de imagens!

domingo, 5 de outubro de 2014

A Invenção de Hugo Cabret (Hugo) - Martin Scorsese

O grande nome do cinema americano Martin Scorsese soube escolher bem um nome do cinema mundial digno de homenagem. George Méliès foi sem dúvida um dos cineastas mais inventivos e talentosos do início do cinema (e até antes disso, nas máquinas do pré-cinema).

Seu universo lúdico e de grande beleza estética tinham muito potencial para explorar uma aventura juvenil como sugeria a proposta de adaptação do livro de Brian Selznick: A Invenção de Hugo Cabret

Entretanto algumas escolhas e falta de ousadia resultam em um filme morno, a história por trás da homenagem é fraca, a conexão com o personagem de Méliès, representado pela sua situação no fim da carreira (falido e frustrado) não seguram a história.

O protagonista, órfão num misto de melancolia e curiosidade, é sem graça (faz lembrar um pouco a adaptação de A Fantástica Fábrica de Chocolate de Tim Burton que também peca por não temperar o menino que leva toda a trama).

Esse órfão, que após a morte do pai tenta seguir na arte dos consertos e invenções, se dedicando a consertar um boneco a quem ele quer dar vida, numa busca a dar vida ao seu próprio pai. 

E a vida que consegue despertar descobrindo e desenterrando a história do próprio Méliès que vive anonimamente em uma relojoaria numa estação em Paris é uma boa premissa.

As soluções estéticas do filme também são boas, tanto que renderam 5 estatuetas do Oscar, entretanto com um roteiro tão fraco fica difícil se manter instigado pelas Invenções de Hugo Cabret.



Fiquemos com A Viagem à Lua e outras pérolas resgatadas de Méliès para assim termos a dimensão desse grande cineasta!

sexta-feira, 3 de outubro de 2014

Estorvo - Ruy Guerra


Baseado no romance homônimo de Chico Buarque, Ruy Guerra cumpre o desafio de fazer um filme absolutamente lírico.

Em Estorvo, acompanhamos o protagonista através do seu olhar: sentimos seus incômodos, vemos as outras personagens com as distorções de seu ponto de vista e vamos sendo levados sem objetivos claros, num fluxo de pensamentos e acontecimentos.

Tudo tem a imprecisão da subjetividade: dos diálogos em falas repetidas, passando pelas lentes exóticas, pelos sotaques ou nas elipses de ações.

A trama faz lembrar outras obras em que os personagens são um pouco vítimas das circunstâncias e não tem objetivos claros, como O Estrangeiro, de Camus.

Aqui também não entendemos muito bem os fatos, mas ficamos totalmente imersos no clima e ao lado desse personagem carismático e intrigante.

O protagonista é vivido pelo cubano Jorge Perugorría, astro do ótimo Morango e Chocolate de Tomás Gutiérrez Alea e Juan Carlos Tabío.

O cubano Perugorría traz um sotaque de português de Portugal e se mistura a vozes brasileiras falando português, espanhol e outras misturas.

O filme às vezes esbarra um pouco na caricatura e fica um pouco datado pela direção de arte e atuação, mas o lirismo fala mais alto.

Não há precisão de tempo, espaço, local e muitas vezes nem mesmo da imagem, reforçando que importa menos a lógica dos acontecimentos e muito mais as sensações.

Como em poemas, como em músicas, como em videoclipes, mas tão raramente em longas-metragens.


Apenas um mestre como Ruy Guerra, autor de obras-primas como Os Cafajestes e Os Fuzis



segunda-feira, 1 de setembro de 2014

Mais um ano (another year) - Mike Leigh


Mike Leigh começou a se destacar por aqui com o longa Segredos e Mentiras. Passou depois com filmes como Tudo ou Nada e Vera Drake e agora está em cartaz com Mais um ano (já de 2010).

Mais uma vez temos o ambiente inglês cheio de formalidades e aparente sobriedade, mas com diversos conflitos querendo transbordar.

Mais um ano começa com uma senhora sendo atendida em um posto médico e falando sobre seus problemas para dormir.
A médica insiste que remédios não resolverão, é preciso descobrir as causas do problema.

Esse é sempre o objetivo de Leigh, mais do que mostrar personagens problemáticas e desequilibradas é mostrar suas origens e motivações.

As personagens de Mais um ano não sofrem com a insônia, com o alcoolismo, com a falta de dinheiro, com a falta de emprego, com a viuvez... Eles sofrem com a solidão, com a falta de afeto, com a falta de auto-estima...

Mike Leigh entretanto sempre esbarra em limiares... Em Segredos e Mentiras, por exemplo, grande parte do público tomava o filme como um verdadeiro drama, e outros tantos como comédia... Mas o riso provocado seria verdadeiro ou de nervoso?

Aqui, Leigh traz personagens à beira de um ataque de nervos, em extremos de atitudes... Mas acabam muito próximas de uma esquizofrenia, não se ouvem, não olham ao redor, não olham para si...

E já o casal central que olha verdadeiramente para todos não apresenta conflitos, resultando também em um artificialismo.

Alguns consideraram isso uma visão otimista do diretor, para mim é um equilíbrio falso.

Nem os problemáticos deveriam ser tão cegos e nem os equilibrados tão lúcidos. Os embates assim poderiam ser mais ricos e complexos. E, assim, nos envolvermos e nos identificarmos mais com as personagens...

Temas tão caros trazidos no filme como a busca pelo amor, pela felicidade, pelo outro em ritmo tão bem construído acabam perdendo um pouco da força e do potencial por essa abordagem de extremos...

Todos temos um pouco de histeria, depressão, bipolaridade, lacunas e falta de tato. Não temos as colocações certas, a auto-consciência e a sensibilidade para agir em todos os momentos e um filme como esse poderia nos despertar muito mais com outra dosagem.

domingo, 31 de agosto de 2014

Como na Canção dos Beatles: Norwegian Wood (Noruwei no mori) - Tran Anh Hung


O diretor vietnamita Tran Anh Hung foi muito bem recebido com seu longa de estréia O cheiro de papaia verde, mas passando mais discretamente com seus filmes seguintes.

Quase vinte anos depois lança Como na canção dos Beatles em abordagem jovial e moderna mas combinada com extrema poesia.

Baseado no livro de Haruki Murakami, Hung conta a história do jovem Toru: suas amizades, primeiros amores, entrada na faculdade...

É o próprio Toru quem narra sua história, começando pela amizade entre ele e o casal Kizuki e Naoko, situação que parece poder ter vários desdobramentos, mas logo é interrompida com a morte de Kizuki.


Sem assimilar ou refletir sobre essa perda, ele logo muda sua vida entrando na faculdade e se mudando para Tóquio.

Ali começa uma vida mais independente (morando sozinho ou com colegas) e de agito político e social do final dos anos 60 (muita música - indicada até pelo título, protestos contra a guerra do Vietnã, mudanças comportamentais e liberação sexual).

Porém o filme tem uma abordagem introspectiva, se aproxima das personagens de maneira delicada e poética.

Toru é um garoto sensível e em idade de se apaixonar e desabrochar, mesmo sem definir sua busca, ele parece à procura de amor e o amor acaba o procurando também.

Ele começa se envolvendo com a Naoko, mas ela entra em depressão e se afasta para fazer um tratamento.

Ele como um bom romântico se coloca paciente e devoto, mas não se fecha a novas situações que lhe aparecem.

Toru não sabe como lidar com tantas emoções ao seu redor e muitas vezes parece apenas re-agir de acordo com o que seus amigos ou as garotas lhe propõe e questionam.

Muito mais do que colocar situações específicas, o filme parece abordar temas abstratos como a paixão, o amor, o desejo, a fidelidade, o ciúme, a melancolia, o fim...

E Hung tem um jeito muito sedutor de filmar, sua câmera apresenta as personagens com beleza e graciosidade e nos faz nos apaixonar por elas.

Mérito também do grande diretor de fotografia Ping Bin Lee - parceiro, entre outros, de Wong Kar-Wai, com quem fez a obras-prima Amor à flor da pele e autor de filmes como Renoir, já comentado aqui.

A música também nos seduz e envolve, sejam os Beatles e outros contemporâneos da história, ou os melancólicos acordes instrumentais.

O roteiro e a decupagem propõe ainda um ritmo que nos leva a outro tempo, seja o psicológico ou o libertário e paradoxal (especialmente numa cultura tradicional e conservadora como a japonesa), que nos faz lembrar de filmes como Os Sonhadores ou Depois de Maio - também comentado aqui.

E como o tempo e os temas representados são de extrema riqueza e complexidade, na trama de Como na canção dos Beatles não há tanto espaço para a simplicidade da banda inglesa, pois ele toca em temas muito mais profundos e para isso faltam elementos.

Faltam entendermos mais a psicologia das personagens e poder analisar melhor os acontecimentos (que chegam a mortes e suicídios), na distância a que somos colocados podemos apenas compartilhar dos sentimentos, através de lentes etéreas, e, mesmo sem entender, conseguimos nos emocionar junto a esses primeiros amores, primeiras paixões e primeiras (e em alguns casos fatais) desilusões.

Como jovens podemos entrar nessa história e passar duas horas profundas com ela, mas se nos distanciarmos, veremos que ela ainda poderia amadurecer um pouco mais...

quarta-feira, 27 de agosto de 2014

Amantes Eternos (Only lovers left alive) - Jim Jarmush


O diretor Jim Jarmush foi se tornando figura "clássica" entre certo nicho alternativo americano. Filmes como Down by law, Café e cigarros e Flores Partidas mostram seu cinema que combina elementos prosaicos e personagens excêntricos.

Em seu filme mais recente: Only lovers left alive (com título traduzido de maneira simplificada para Amantes Eternos), Jarmush aproveita a imortalidade de seu casal de protagonistas para fazer uma reflexão sobre a humanidade e os ciclos de seus séculos mais recentes de história.

Os vampiros vividos pelo ator pop Tom Hiddleston e pela versátil e sempre surpreendente Tilda Swinton, já destacada aqui por trabalhos como Um sonho de amor, interessante filme de Luca Guadagnino

O homem de Londres, do genial diretor húngaro Bela Tarr, já comentados aqui.

O casal Adam e Eve tem um clima blasé, ele com certa desilusão e melancolia e ela com certo tédio e resignação. Amantes de (muito) longa data, não tem a urgência da paixão tão afeita às românticas histórias de vampiros, mas uma cumplicidade de tudo que já viveram juntos. 

Porém esse passado com um potencial tão rico se torna um índice enciclopédico de tudo que eles viram no mundo e todas as pessoas que conheceram (grandes músicos, filósofos, poetas, escritores, cientistas...

(faz lembrar um pouco Meia-noite em Paris de Woody Allen - também comentado aqui - ou a música Gita de Raul Seixas, mas sem a mesma graciosidade).

Dentro das brincadeiras enciclopédicas há também certa questão sobre a autoria X anonimato X reconhecimento X celebridade, mas que não é muito trabalhada.

O filme também não explora muito o interessantíssimo conflito da possibilidade da vida eterna, há o desconforto e alguma inquietação, mas não vai muito além. 

Apresenta-se a estagnação de amadurecimento das personagens, ressaltados pela coadjuvante Ava, adolescente vivida pela jovem promissora Mia Wasikowska e  esboça-se o desejo de suicídio Adam, mas nada que seja levado a fundo.

O conflito melhor delineado é a crítica desses vampiros aos "zumbis", maneira a como eles se referem aos humanos, serem preocupados com o consumo (ora de carros e petróleo, ora de água...);

Vivendo ciclos de degradações do planeta e deles próprios (doenças como pestes ou aids, que acabam pondo em risco à própria "vida" dos vampiros, eternos consumidores de sangue, chegando a aniquilar Marlowe, personagem vivido por John Hurt).

Diversas questões existenciais, filosóficas, sociais e políticas, muito estilo (fotografia, arte, montagem e trilha sonora), mas que terminam em uma trajetória  (secularmente) linear, estimulando aos mais próximos desses temas e metáforas, mas sem muitas emoções.