quinta-feira, 3 de novembro de 2016

Vidas na fronteira (Life on the border) - diversos


O iraniano Ghobadi já havia mostrado a realidade de crianças curdas nas fronteiras de guerra e guerrilha do Iraque em Tempo de embebedar cavalos ou Tartarugas podem voar - já comentados aqui.

Neste último, uma narrativa crua, sensível, poética e profundamente triste, na qual ele mostrou a exposição à guerra, às bombas, às mutilações, aos estupros, aos sequestros, à orfandade, ao luto, à fome, às doenças, à morte e mais que tudo a exposição à vida, a esse arremedo de vida.

Difícil nos expormos a essa realidade sem desacreditar na humanidade. Onde fica nossa esperança em rostos tão jovens e sem mais nenhuma inocência ou alegria?


Esse sentimento é reiterado no novo projeto de Ghobadi Vidas na fronteira. Aqui Ghobadi deu voz (e câmera) para que as próprias crianças documentassem suas vidas.

São narrativas bem simples, em que as crianças relatam seu cotidiano, suas perdas, suas dores, suas revoltas. Ou simplesmente nos mostram.

Escassez de comida, de remédios, de acomodações, de lazer, de esperança. Essas crianças não têm sonhos, apenas pedem que a guerra pare de matá-los.

Os curtas são crus e sem muitos recursos de linguagem, alguns breves momentos nos dão respiros:

Seja nas cenas de making of ao final ou em trechos que nos mostram um céu de ponta cabeça, uma partida de futebol ou músicos ensaiando uma serenata. 

Este último caso é revelador sobre as relações apresentadas (tanto das personagens ali, quanto a nossa com o filme): o grupo de músicos que busca uma voz feminina para completá-los não tem sucesso. 

Eles encontram a garota de linda voz, mas essa está calada. O nó em sua garganta (causado pelas mortes, estupros, doenças e sequestros em sua família) não a deixam mais cantar.

Mais do que uma experiência cinematográfica, uma experiência de vida. Para pensarmos o que acontece em nossas vizinhanças, em fronteiras não tão distantes, e que não podemos ignorar, dada a gravidade.

Documento de emoção, revolta e denúncia. Difícil retomar narrativas de guerra tão frequentes nas telas de cinema e de TV com os mesmos olhos.


Pensamos em Sniper Americano (comentado aqui - que inclusive é assistido por algumas das crianças no filme, num espetáculo grotesco pelo paternalismo e vilanismo dos EUA que nos parecem amplificados por esse testemunho);

Ou na série Homeland ou em dezenas de outros casos, e concluímos que a maior parte da humanidade não pensa de fato nessas crianças, que o capital e o obscurantismo (a ganância por petróleo, o fundamentalismo e imposição de ideias e ideais) são verdadeiros assassinos.

Sniper Americano - Clint Eastwood


Clint Eastwood é um cineasta complexo.
Com pensamentos conservadores e reacionários, ele muitas vezes os questiona e tematiza.

Foi assim em Sobre meninos e lobos, Menina de Ouro ou Gran Torino - já comentados aqui - por exemplo, alguns de seus maiores filmes recentes.

Ele se coloca nos filmes como personagem de si mesmo (em Gran Torino e Menina de Ouro atua e em Sobre meninos e lobos seu alterego se dá na figura de Sean Penn) e tem suas razões questionadas por outros personagens - no primeiro uma descendente chinesa com referências e questionamentos muito diferentes dos seus;


No segundo por uma boxeadora que fica paralítica e passa a desejar a eutanasia;

E no terceiro por um homem valente que fazer justiça pelo assassinato de sua filha (e que por isso praticará uma grande injustiça).

Mas Clint nem sempre traz nuances em seus filmes, em A Troca ou Além da vida - também comentados aqui - apresenta o drama de forma exagerada e espetacular, sem tanto espaço para nuances.

Em Sniper Americano também. 
O retrato de um atirador de guerra poderia vir cheio de questionamentos complexos: por que matar, por que lutar, por que morrer?

Mas nenhuma dessas questões estão presentes no filme. Os tiros sempre são justificados pela questão patriótica, que se sobrepõe a questões humanas.

O valor da vida não é tematizado e o resultado é um filme competente e extremamente desumano.

Leia também os comentários contundentes do crítico Luiz Zanin aqui.

terça-feira, 1 de novembro de 2016

Um dia perfeito pra voar (Un dia perfecte per volar) - Marc Recha


O diretor catalão Marc Recha se encanta com temas da infância e apresenta isso em seu filme mais recente Um dia perfeito pra voar.

Marc constrói uma narrativa simples, pautada em inspirações biográficas (tanto que ele e seu filho atuam no filme, quase que numa homenagem de sua relação): um menino interagindo com um homem em uma montanha próxima a Barcelona.

Uma tarde se passa com o homem lhe ensinando a empinar uma pipa e lhe contando histórias e fábulas.


Durante essa interação o menino revela o universo lúdico, investigativo e imaginativo das crianças, um dos maiores méritos do filme.

Lembra bastante Ponette de Jacques Doillon - com comentários aqui, tanto pela abordagem com a criança quanto pela temática de imaginação e perda na infância, mas sem a força dramática espetacular que Doillon atinge. 

Recha faz uma construção mais prosaica, que no início encanta, mas se desgasta e acaba não decolando.


segunda-feira, 31 de outubro de 2016

Questões Pessoais (Omor Shakhsiya) - Maha Haj



Estréia da diretora Maha Haj em longas-metragens, ela faz um filme simples mas simpático.

Questões Pessoais apresenta conflitos familiares: desde o desafeto e tédio crescente em um casamento de décadas;

passando por conflitos de um casamento recente e uma gravidez;


ou por um namoro onde se enfrenta o receio do compromisso.

Maha constrói a trama com bom humor, exagerando um pouco as situações e colorindo o cotidiano com detalhes particulares, humanos e divertidos.

A rede - Kim Ki Duk



O coreano Kim Ki Duk é um dos cineastas mais talentosos na atualidade para pensar premissas filosóficas e conceituais para seus filmes e narrativas poéticas e sinestésicas.

Filmes como A Ilha, Time, Sonhos ou Pietà - já comentados aqui - trazem questões chave como: a duração do amor, o ciúmes, a simbiose afetiva, as relações familiares etc, sempre em narrativas extremamente criativas.


Em A Rede, Kim Ki Duk traz a questão política da divisão da Coréia a partir da história de um pescador da Coréia do Norte comunista, que sem querer atravessa a fronteira e passa a ser investigado por supostas espionagens na Coréia do Sul capitalista.

O tom do filme varia entre a ação e violência (de forma tipicamente oriental), comicidade e tragicidade da situação kafkaniana e dramaticidade dos afetos familiares e relação que se forma entre o pescador e um dos policiais.

A leitura de todas essas nuances para nós de cultura tão diferente pode instigar, chocar ou provocar estranhamentos dependendo do momento. Muitas vezes não sabemos se a peculiaridade é do personagem ou da própria cultura, mas isso também é o que enriquece nos colocar diante da obra e desse outro mundo tão diferente. O cinema se prova um portal para viagens narrativas.

A Rede trata desde os absurdos de investigações policiais, a angustia da tortura, o desafio da palavra e da honra até os prós e contras de sistemas políticos:

a abertura e selvageria do capitalismo e as restrições e privações do sistema "comum", "igualitário" e por isso também propenso a corrupções.

Os pontos fortes do filme são a construção intimista da tortura, os contrastes entre capitalismo e comunismo e a simplicidade do protagonista.

Para ressaltar ainda mais essas qualidades, Kim Ki Duk poderia ter optado por uma narrativa menos didática e mais poética, pois quando o filme faz esses respiros, é capaz de momentos sublimes.

A Garota Desaparecida (La fille inconnue) - Jean-Pierre e Luc Dardenne


A dupla de irmãos belgas Jean-Pierre e Luc Dardenne já bastante consagrada com seus filmes intimistas, densos e concisos como A Promessa ou O Garoto da bicicleta - já comentado aqui, apresenta um novo "caso" em A Garota Desaparecida.

Adèle Haenel conhecida por filmes como Aliyah e L'Apollonide: Os amores da casa de tolerância - também comentados aqui é uma médica em início de uma carreira promissora. Logo no início ela vive o dilema da carreira do quanto se envolver com os casos que trata.

Isso é colocado à prova quando deixa de atender uma campainha e a moça que a toca desaparece. 

A médica então muda um pouco suas atitudes e tenta compensar e reverter sua atitude, num novo papel  controlador, reparador e investigativo do caso.

O filme nos atrai a acompanhar bem de perto a trajetória da moça (num talento de direção que os Dardenne dominam muito bem e de maneira muito parecida com o belíssimo filme anterior Dois dias, uma noite), entretanto faltam elementos psicológicos que aprofundem a trama.

Diferente de outros filmes da dupla, que nos levam a diversas reflexões e lacunas instigantes, aqui a concisão deixa o filme um pouco plano. 

Não há crescentes, mudanças da personagem ou outras nuances, os coadjuvantes contribuem também com suas histórias, mas como aparecem de maneira um pouco estanque não trazem tantas curvas dramáticas à narrativa.

Faltam talvez mais variações das intenções dessa protagonista, ela ser mais confrontada e nos levar a mais emoções que nos aproximem da trama.