terça-feira, 10 de abril de 2012

O Porto (Le Havre) - Aki Kaurismaki


O diretor finlandês Aki Kaurismaki, também conhecido por sua direção de O Homem Sem Passado, traz uma história bem européia em O Porto.
O filme se passa na costa oeste da França, onde um casal vive de maneira singela, tentando manter a dignidade em meio a uma quase pobreza. 


O senhor Marcel Marx é engraxate, mas mantém a postura em sua rotina, se deixando controlar pela mulher, Arletty, uma estrangeira que o resgatou de momentos mais duros (mencionados apenas ligeiramente no filme).

A rotina dos dois no subúrbio da cidade, apesar de melancólica, parece agradável e estável, mas a rotina sofre mudanças com a descoberta de um câncer em Arletty, que ela tenta cuidar sozinha para poupar o marido.

E muda, principalmente, com a chegada de imigrantes ilegais que tentavam se esconder para chegar em Londres.


Marcel se comove com a situação e passa a ajudar um garoto que consegue fugir da polícia. Marcel consegue envolver sua comunidade que se une e se apóia na empreitada.


Um microcosmo de uma situação vivida pela Europa, que a todo momento tem que se posicionar frente aos imigrantes, à xenofobia, a outras classes sociais, frente a lutas de igualdade, liberdade e fraternidade.

Questões complexas e muito caras ao velho continente. Apesar disso o filme não é emocionante e dramático. Mais contido ainda do que o similar francês de 2009, Bem-Vindo, já comentado aqui.

Ali a amizade entre um jovem imigrante ilegal e um europeu também se construíam em um crescente interessante, porém com desequilíbrios.


Em O Porto não há desequilíbrios, mas há um tom cerimonioso que parece de fábula, como se Kaurismaki quisesse manter distância da história, com gestos e diálogos um pouco empostados e artificiais.


A estética do filme também segue a distância, uma fotografia, arte e som que não precisam tempo e espaço.

O caráter não dramático do filme vem também por as personagens não passarem pelas clássicas transformações: não há crises psicológicas, questionamentos, conflitos e superações. Os conflitos são de ações e as soluções bem práticas. Toda complexidade ideológica que poderia estar presente diante de tal questão é resolvida de maneira simples, talvez pela postura do diretor de não ver dúvidas dos encaminhamentos corretos em relação aos imigrantes ilegais.

Nesse sentido, apesar de semelhanças temáticas com outro exemplar francês da última safra, As Neves do Kilimanjaro, também comentado aqui.


Não há a mesma ambiguidade e nem o mesmo envolvimento com as questões apresentadas. Mas há também a profundidade, beleza e poesia de uma trama humanitária. Vale embarcar!




segunda-feira, 9 de abril de 2012

E La Nave Va - Fellini


Microcosmo da sociedade a bordo de um navio. O funcionamento de um grupo artístico, o posicionamento das pessoas da alta classe frente a outras classes... A atitude, os gestos, as máscaras... E la nave va...

Por um trajeto tido como romântico, rumo às margens de uma ilha, para deixar as cinzas de uma cantora.


Os "colegas" da cantora estão ali (ex-companheiros de trabalho, futuras possíveis substitutas etc...). 

Está também o jornalista que serve como espécie de narrador do filme (figura comum entre os filmes de Fellini). E para representar as outras classes estão oficiais e os trabalhadores do navio.

O foco se inicia nos artistas, entre os quais tudo parece calculado e artificial, muita pompa e gestos  meticulosos, e olhares e palavras onde se vê falsidade e interesses ocultos.

Há jogos implícitos que acabam tendo seu rumo desviado quando o navio abriga sérvios, refugiados de guerra. Questões como preconceitos, paternalismos e desigualdade são levantadas...

Eles ao mesmo tempo trazem um naturalismo (com necessidades mais reais, como a fome e o frio e de expressão artística mais autêntica e espontânea, produzindo música como extensão de seus sentimentos). Essas atitudes se chocam com a dos artistas em suas ações mecânicas.

A discussão de classe também se aprofunda, principalmente quando o navio começa a ser atacado e sofre a ameaça de afundar... 

Muitas metáforas possíveis desde as mais visíveis lutas de classe, passando por metáforas de guerra, revoluções sociais, sistemas políticos... Símbolos para o capitalismo, movimentos operários... O mundo em seu microcosmo que "vai"...


Cumprir ou descumprir seus propósitos (jogando cinzas ao mar ou afundado)...


Muitas camadas e muitos mergulhos possíveis, um oceano felliniano podendo ser desbravado...

domingo, 8 de abril de 2012

Os Palhaços (I Clowns) - Fellini


As narrativas de Fellini são comumente construídas a partir de esquetes, de cenas representativas, alegóricas e, nesse caso, de homenagem.

Encantado pela magia do circo, Fellini reconhecia no cinema a possibilidade de sua sétima arte como palco para os mesmos encantos... 

As personagens, as máscaras (narizes vermelhos ou olhos maquiados - vide Giulietta na cena final de Cabíria), a comédia, a fantasia, o faz-de-conta, os Palhaços...


Aqui vemos a reconstrução de quadros circenses filmados com pretexto de lembranças e considerações do próprio Fellini e de uma reportagem para homenagear grandes nomes da arte do circo. 

Assim, entrevistas com importantes palhaços europeus dão o tom de reverenciamento, mas também de melancolia...

(o que é frequente ao se falar do circo, grande arte e entretenimento de décadas atrás e agora em substituição e decadência, como trabalha também Selton Mello em seu último filme, já comentado aqui).

Acaba ficando no filme um tom de um tempo que se foi (e não volta mais?), de palhaços que estão esquecidos, aposentados, sem brilho...


Fellini reconstrói cenas e ressuscita grandes artistas, mas também deixa no ar o questionamento de até onde se tem fôlego para que essa chama permaneça! 


(Já que na cena final com uma longa reconstrução de um quadro circense, um dos palhaços precisa se sentar para se recompor).


Que permaneça o circo, que permaneça Fellini!

terça-feira, 20 de março de 2012

Cidade das Mulheres (La città delle donne) - Fellini


Filmes oníricos e alegóricos não são para qualquer um. É muito fácil se cair em tramas aleatórias, simplistas, didáticas... O "tudo" facilmente pode virar "nada"... 

O mesmo perigo em se confundir moral com amoral e imoral, ou de se confundir a lógica distinta com a falta de lógica (questionada por exemplo por Lewis Carroll com suas Alices).

É preciso densidade, embasamento, e temáticas especiais - e também talento para manejar e construir um universo não real...
Também é preciso talento para se manter envolvente e tragar as pessoas...



Como faz Fellini em seu sonho de uma Cidade das Mulheres...


Ali os "fantasmas" de um homem mulherengo, interpretado com precisão por Matroianni - 

O alterego mais frequente de Fellini - trazem uma densa psicologia, passível de diversas interpretações psicanalíticas... 

Há desde uma construção da imagem feminina (pela sensualidade das matronas italianas, pela descoberta do desejo em situações proibidas, pela quantidade, qualidade e diversidade de mulheres possíveis de se conhecer na vida);


Até uma construção da maneira de se relacionar com as mulheres (no caso, de vê-las como objetos de seu desejo sem uma maior atenção e cuidado, caindo facilmente em comportamentos machistas altamente reprováveis).


Fellini se aproveita do "sonho" e do "delírio" para fazer várias críticas à sociedade machista, para dar um olhar bem humorado ao feminismo e para explorar as nuances de relações homem X mulher, dentro de seu próprio universo

(já que podemos intuir sobre sua família e sua descoberta da sexualidade através de seus outros filmes também).

A alegoria de certas personagens consegue ter diálogo com a adaptação de Joaquim Pedro de Andrade para Macunaíma, de Mário de Andrade;

A lógica de seu sonho oferece diálogo com o mais contemporâneo David Lynch e suas Mulholland Drives; e a estética dos anos 80 (o filme é de 1980) dialoga bastante com seu tempo, até fazendo lembrar do recente Death Proof - À Prova de Morte, de Tarantino (já comentado aqui), que também bebe nessa fonte...

Universo rico e que sempre vale a pena ser (re) visitado...
Mais uma vez: Viva Federico!!

segunda-feira, 19 de março de 2012

As Praias de Agnès (Les plages d'Agnès) - Varda


Artista, videoartista, superoitista, poeta audiovisual.


Em As Praias de Agnès, seu filme mais recente, Agnès Varda revisita sua vida através de sua obra e traz um diálogo sobre origens, infância, juventude, sonhos, amores, aspirações, inspirações, transpirações...

Trabalho: arte lapidada, debatida, degustada.


O documentário vale principalmente como registro sobre Varda, seus processos criativos, trechos de sua trajetória...

Mas também momentos de extrema poesia, como o início em que ela constrói um jogo de espelhos na praia... Transcriação de imagens de céu, mar e areia cheia de rimas, metáforas e melodia.

Válido também pelo registro de Varda contendo o registro de uma época fulmegante: cinemas novos, novelle vague, pop art, movimentos sociais, feminismo, panteras negras, rebelião de gauches...


Singelo, sensível, feminino (e profundidades bem colocadas por Julio Bezerra em sua crítica na Cinética).
Varda, 83 anos, diz ter sido seu último, mas quem sabe...
Cleo das 5 às 7 ainda pode nos trazer um quarto a mais...


domingo, 18 de março de 2012

Ensaio de Orquestra (Prova d'orchestra) - Fellini


Fellini parece dividir sua filmografia entre filmes mais narrativos, onde busca sentimentos profundos atrás de suas personagens carismáticas e sonhadoras - desde clássicos dos anos 50 e 60 como Noites de Cabíria e A Doce Vida, até seus últimos títulos como Ginger e Fred.


E entre filmes mais alegóricos, propondo situações complexas, reveladoras, denunciadoras, divertidas, em filmes mais "caóticos" como 81/2, Amarcord, Cidade das Mulheres e La Nave Va, ou o clássico de 78, Ensaio de Orquestra.



O filme, concebido para ser um especial televisivo é simples em sua construção:

Cerca de 70 minutos de filme fazendo as vezes de 70 minutos de história; um galpão de estúdio fazendo as vezes de um galpão de ensaio; poucos elementos de arte e figurino, decupagem simples, nenhum excesso ou rebuscamento.


A importância está na dramaturgia, nas discussões passadas durante um ensaio de uma orquestra revelando, por exemplo, as motivações de cada músico (amor à música, acomodação, sonho de sucesso etc)... 


Ou os conflitos entre o trabalho de inspiração e amor e o trabalho de ensaio, cotidiano, prática...

Por trás ainda há sugestões mais indiretas como a opressão causada por comandantes, o espírito ditatorial de "regentes" na vida, rebeliões e falta de direcionamento de executores, organização trabalhista...


Sempre sendo possíveis paralelos entre o filme e a própria vida de Fellini, orquestrada em interessantes registros audiovisuais.


De quebra ainda temos como cereja do bolo a belíssima trilha composta por Nino Rota...



E viva Fellini!