terça-feira, 20 de agosto de 2013

Flores Raras - Bruno Barreto


Bruno Barreto tem um faro muito bom para histórias, seja para adaptações de livros como Dona flor e seus dois maridos ou Beijo no asfalto. Seja para histórias reais como O que é isso, companheiro? ou Última parada 174.


O mesmo nesse seu trabalho mais recente: Flores Raras.

A ressalva está pela maneira como narra essas histórias, como escolhe situações extremamente complexas, de questões ambíguas, personagens multifacetadas e cheias de camadas, mas que recebem um tratamento que as chapa.

Podemos ver em Flores Raras a preciosidade que tinha nas mãos para tratar com delicadeza a vida de uma poeta que sofria tanto e traduzia isso em imagens e versos tão bonitos e retratar um período rico e intenso de sua vida.

Mas Bruno Barreto faz o filme parecer uma novela.

A visita de Elizabeth Bishop ao Brasil e sua descoberta de um grande amor, pela arquiteta Lota de Macedo Soares, a vivência de uma estrangeira complexada e reprimida em terras brasileiras durante o período de pré-golpe e golpe militar;


Ou o triângulo amoroso que vive com Lota e sua ex(?) companheira Mary;


A maternidade entre homossexuais;

A visão política de paisagistas, as desigualdades sociais do Brasil, tudo isso está insinuado no filme e é material para um resultado profundo e sensível, mas parece ficar na intenção.

Não há tempo para nos envolvermos com cada questão, tudo é passado rapidamente e sempre com pontuações grosseiras de trilhas sonoras e metáforas visuais (da famosa tempestade no momento de crise, passando pelo luar para lembrar a paixão até o barco afundando para o momento da morte).

Bruno fica numa fronteira pois não vai a fundo na história, ficando longe de um filme mais profundo e poético, mas também não parece torná-lo popular (o que talvez fosse seu desejo). 

Os temas que aborda aqui não são tão acessíveis e comerciais e sua linguagem já há tempos parece não emplacar grandes sucessos. Essa boa dosagem parece realmente ter ficado em suas experiências da virada dos anos 70/80.

Uma pena não fazer jus a essa história tão interessante e que só pelas pitadas do filme já é capaz de nos deixar instigados e enlevados.


 Uma arte
"A arte de perder não é nenhum mistério;
tantas coisas contêm em si o acidente
de perdê-las, que perder não é nada sério.

Perca um pouquinho a cada dia. Aceite, austero,
a chave perdida, a hora gasta bestamente.
A arte de perder não é nenhum mistério.

Depois perca mais rápido, com mais critério:
lugares, nomes, a escala subseqüente
da viagem não feita. Nada disso é sério.

Perdi o relógio de mamãe. Ah! E nem quero
lembrar a perda de três casas excelentes.
A arte de perder não é nenhum mistério.

Perdi duas cidades lindas. E um império
que era meu, dois rios, e mais um continente.
tenho saudade deles. Mas não é nada sério.

— Mesmo perder você (a voz, o riso etéreo
que eu amo) não muda nada. Pois é evidente
que a arte de perder não chega a ser mistério
por muito que pareça (Escreve!) muito sério".

sexta-feira, 16 de agosto de 2013

Ferrugem e Osso (De rouille et d'os) - Jacques Audiard


Jacques Audiard parece tentar dosar a emoção potente, latente e contida em seus personagens e seus arredores e vidas duras.


Não tão "romanceado" quanto seu De tanto bater meu coração parou (lindo título, por sinal).

Nem tão árido quanto seu Profeta - já comentado aqui.

Ferrugem e Osso traz personagens densas e enigmáticas. Há algo por trás de suas expressões, de seus gestos, de seus cotidianos. Há algo em seus olhares que é profundo e difícil de decifrar.

Personagens fraturados, mas não pelos machucados físicos, há algo que lhes está amputado por dentro.

Lembrando personagens dos irmãos Dardenne - já comentados por aqui.

Menos que o jovem pai que se vê sozinho com a responsabilidade de criar seu filho de 5 anos.

Menos que convivência precária e de dificuldades que tem ao lado da família e em seus bicos de segurança e afins.

Menos que seu encontro com uma jovem descontente com seu caminho e completamente perdida após um acidente que lhe leva as pernas.

O filme é sobre a busca por afeto desses seres, a busca de reconhecimento, a busca de amor...

Uma busca tão difícil, tão agressiva e dolorida que eles se colocam à prova o tempo todo, desafiam limites físicos, como se precisassem descobrir onde estão seus contornos:

A garota - vivida pela talentosa Marion Cotillard - que treina baleias em um parque de atrações;

O rapaz - vivido por Matthias Schoenaerts, menos conhecido por nós, mas igualmente à altura da densidade exigida pelo filme - que participa de "rinha de pessoas".

Essa violência a que as personagens se submetem nos deixam em um estado latente de apreensão.

Mas não há uma manipulação dessa energia como em Menina de Ouro, do mestre Clint Eastwood, por exemplo, que aproveita os muitos minutos de apreensão geradas pela violência das imagens para depois provocar uma catarse de sentimentos em choros que vem fáceis no acúmulo de emoções.

Também não há catarses pela ação ou diversão como nos filmes de Tarantino, do recente Django Livre - já comentado aqui.

E mesmo com histórias parecidas, não busca personagens de dores mais óbvias como de Amores Perros de Alejandro González Iñárritu.

As citações de tantos filmes que Ferrugem e Osso suscita talvez se dê pela universalidade dos sentimentos expostos, mas as feridas ali estão mais submersas, as mutilações são outras...

Talvez Audiard tenha identificado no conto de Craig Davidson metáforas físicas e visuais para questões mais profundas e filosóficas de: o que precisamos pra nos sentirmos inteiros, o que nos falta, o que buscamos...

E para isso ele cria imagens belíssimas, brinca com texturas da água, joga com o balé dos gestos e da decupagem, associa músicas bonitas e variadas e bela fotografia...

Também rege grandes atores (não só o casal protagonista, mas também os coadjuvantes, como Céline Sallette de Apollonide - já comentado aqui - ou o ator mirim)...

Ou seja, Audiard dirige um ótimo filme e nos deixa já na expectativa do próximo que está por vir...


sexta-feira, 9 de agosto de 2013

A Humanidade - Bruno Dumont


Bruno Dumont vem se destacando nas últimas décadas como um cineasta de densos e instigantes thrillers psicológicos.


Foi assim desde seu primeiro longa: A Vida de Jesus seguido do aclamado A Humanidade.

A Humanidade acompanha um funcionário público em uma cidadezinha no interior da França que divide sua vida entre as tarefas no posto policial e a investigação sobre um assassinato de uma menina;

Sua vida domiciliar com a mãe, encontros e passeios com a vizinha e seu namorado;

Ou ainda momentos em que ele se relaciona (ou que o relacionamos) com a paisagem local - (algo recorrente em seus filmes e que foi muito explorado também no mais recente Fora de Satã - já comentado aqui).

O mérito de Dumont é realmente a construção de personagens, em toda sua profundidade e complexidade. Com tempos próprios construídos através da mise-en-scène, interpretação, diálogos (ou ausência de) e montagem.

Também pela densidade de cor e enquadramentos da fotografia e trabalho sonoro.

O filme tem um peso e um ritmo próprios, mas que são justamente o que nos insere nesse universo tão particular e ao mesmo tão universal. Essa humanidade "bizarra" e que nos diz tanto respeito. 

Faz lembrar tanto mundos de tédio e horror como alguns de Gus Van Saint ou Larry Clarck. Ou ainda o mundo de personagens peculiares de Gaspar Noé - já comentado aqui, David Cronenberg também comentado aqui ou até de clássicos do mestre Dostoievski.

Muitas camadas, muitas leituras, muitas emoções (implícitas), muitas interpretações (por exemplo as de Cléber Eduardo no site Contracampo)... Interpretações da personagem perturbada, com dificuldades sobre sua sexualidade, suas relações, seus sentimentos... Interpretações sobre sua generosidade, sua dor,  seu horror, seu exercício de perdão...

Difícil de assistir e digerir, exatamente pelo tanto que impregna:

Os sentimentos, sensações e imagens tem tanta força que permanecem conosco e nos deixam buscando mais das personagens... Pelas lembranças do filme ou por nós mesmos.

Que Bruno Dumont siga com suas interpretações de novas humanidades em muitas outras obras por aí...

terça-feira, 6 de agosto de 2013

Marina Abramovic: the artist is present - Matthew Akers, Jeff Dupre


A dupla Matthew Akers e Jeff Dupre documentou a exposição de retrospectiva da obra de Marina Abramovic realizada no MoMa em 2010.

A partir da elaboração e execução dessa exposição, Marina e as pessoas em seu entorno (parceiros, artistas, curadores, críticos, amigos, ex-maridos etc) se colocam presentes para uma reflexão sobre sua persona e sua arte.

Quem é Marina? (ou quem são Marinas). E onde ela está presente?

A moça que foi educada dura e militarmente por pais guerrilheiros e dirigentes do partido comunista na Iugoslávia. A que foi mimada pela avó religiosa. A que viveu a juventude nos intensos e libertários anos 60 e 70. A que sempre buscou seus próprios limites, seus próprios parâmetros, seus próprios conceitos e fazendo disso sua arte.

Vemos também a Marina que está na correria burocrática da produção de uma exposição. A que está introspectiva por sua retrospectiva. A que está em harmonia com seu estilo de vida e que medita e ensina pupilos. A que está presente. Mas como?

Desde as primeiras performances Marina investigava os significados dos gestos e testava os limites do corpo. Explorava as marcas que vão sendo deixadas em nós por nossa cultura, nossos hábitos, nosso gênero, nossos pais, nossos amores...


Na investigação sobre o gênero, descobriu sua "cara-metade" Ulay, artista alemão com quem criou e atuou em diversas performances.

O filme explora a relação que eles tiveram no passado (das parcerias artísticas à do casamento) através de suas lembranças e trechos dos registros das performances.

Além disso documenta seu reencontro. Nesse sentido talvez crie cenas artificiais demais, buscando emoções que poderiam soar muito construídas, não fosse a autenticidade e intensidade dos envolvidos.

Marina também se faz presente em breves depoimentos ao longo de ações corriqueiras que são registradas (cozinhando, tomando banho, se deslocando) ou em intervalos de seu intenso cotidiano.

Mas, principalmente, Marina se faz presente na principal performance que integra sua retrospectiva no MoMa: The Artist is Present.

Marina elabora uma nova performance na qual se coloca presente pelos três meses de exposição. Apenas Marina em uma sala recebendo pessoas e trocando olhar com elas por quinze minutos.

Em princípio é fácil acompanhar a concepção da performance e repetir a pergunta tão ouvida por Marina em toda sua trajetória: "isso é arte?".

Com a abertura da exposição começamos a ver que pode haver um significado importante com esse gesto. Mas só com o passar do tempo (foram mais de 700 horas em que Marina esteve ali presente) e com as diferentes reações do público que vamos tendo a dimensão de seu gesto.

Começamos a descobrir a Marina que transborda de amor e que quer compartilhar esse afeto dedicando quinze minutos de olhar puro, direto e por isso tão intenso a cada um que se interessa por se sentar à sua frente.

Vemos pessoas estranhando, se constrangendo, julgando, mas, principalmente, vemos pessoas se comovendo por se sentirem olhadas verdadeiramente. Vemos a emoção de pessoas que se sentem reconhecidas, tocadas, amadas...

Como um terapeuta que pode "libertar" um paciente pelo simples gesto de escutar, Marina parece libertar e engrandecer pessoas com o simples gesto de olhar.

Carência dela que precisa de interlocução para seu amor intransitivo? Ou generosidade sem limites?

O que é certo é sua singularidade. E como essas questões que suscita faz com que os formatos da arte possam seguir sendo transformados, que o papel da arte possa seguir sendo questionado, que as performances que parecem tão datadas e desgastadas possam se renovar e que a própria Marina possa se reinventar a partir de si mesma.

Linda experiência. Feliz de quem pode estar presente ao vivo. Mas feliz também os que podem ver o filme. Marina Abramovic: the artist is present.

Presente para nós.