segunda-feira, 10 de outubro de 2022

Marte um - Gabriel Martins

Um retrato da complexa simplicidade do dia a dia. Ou da simples complexidade?
Um filme das individualidades dentro de um coletivo ou do coletivo que se reflete em cada individualidade?
Uma narrativa sobre o prosaico do cotidiano ou sobre o imensurável terror dos pesadelos e brilho dos sonhos?

Marte um parece tudo isso. E muito mais.


Despretensioso, mas de uma profundidade ímpar.

Em seu encadear quase desconexo chega em um dos resultados mais coesos e tocantes do cinema brasileiro recente.

Marte um é o sonho de um menino, mas é também o contraponto do sonho de um pai, tem a cumplicidade dos sonhos da irmã e a redenção das aflições da mãe. Marte um fala de desejos e imaginários, mas apresentados através de um cotidiano extremamente concreto.

Tem as notícias de TV, nosso presente político, os programas de sucesso, a ética e a estética vivida, as possibilidades postas, as pautas de costume, as contraposições das minorias (diferenças de classe, aceitações e ressentimentos, lutas de acesso, quebras de barreiras e preconceitos, modas, sexualidades, paixões - inclusive a "nacional", culturas, vícios, perdições, religiões, amizades, família).

Tem uma boa construção de ambientes e momentos primorosos do elenco.

Tem drama, tem humor, tem realismo, tem poesia.

Tem um índice de questões psicanalíticas postas: enfrentamento aos pais, narcisismos, pulsões de vida e morte, ninhos vazios, angústias, amores.

Tem tudo isso e sem ser didático. Um filme singelo e afetuoso.

Pode causar estranhamento, demorar a aquecer, mas a emoção com certeza chega, quiçá até arrebatando!

terça-feira, 27 de setembro de 2022

Elvis - Baz Luhrmann


Que história genial a de Elvis.

Ícone pop, cantor fenomenal, somado a uma performance sexy e chocante, mas com potencial para muito mais...

Sua entrada na música por influência não só da música country local mas também pela cultura negra em plena ascensão do rhythm and blues, poderiam resultar em algo ainda mais criativo, irreverente e arrebatador.

Acabou sendo "apenas" um ídolo de multidões e um dos principais nomes do início do rock. 

Seu potencial foi corrompido, a figura frágil, o rapaz vulnerável que acabou susceptível a influências familiares, à ganância de seu produtor Tom Parker e à sedução e apelo das drogas.

As personagens estavam todas colocadas: o mocinho, o bandido, os coadjuvantes e o cenário efervescente do choque cultural e da música dos anos 50, 60 e 70. 

O filme traz tudo isso e ainda tenta modernizar mais uma linguagem que por si só já seria eletrizante. Mas o que seria de Baz Luhrmann sem querer brilhar ainda mais do que todas as lantejoulas de Elvis?

E deu certo. Com sua linguagem frenética, captando o ritmo tiktok da atualidade, alcançou um grande público.

Porém, para um público desejoso de adentrar e se emocionar com a história de Elvis, fica faltando espaço (e tempo) para envolvimentos. 

A imagem não para nem por um segundo na tela: são cortes, movimentos de câmera, movimentação de atores, efeitos, sons, narração... O filme é uma metralhadora audiovisual. 

Não dá tempo para respirar e, portanto, falta fôlego para os possíveis momentos de arrebatamento.

Tanto da história pessoal e familiar, quanto pela contemplação de sua arte.

Ao contrário de outros filmes musicais como Bohemian Rhapsody ou Rocketman não dá pra dar "play" no filme como em um disco de melhores músicas. Talvez como um clipe de melhores momentos das melhores músicas (com duração de 2h40).

O filme acaba "faltando", dado tantos excessos...

quarta-feira, 21 de setembro de 2022

Pureza - Renato Barbieri

Personagem incrível, típica pessoa que ao ouvir a história falaríamos: "daria um filme". E deu.

Tema atual e extremamente importante: trabalhos análogos à escravidão, exploração, desigualdade social, concentração de terras, favorecimentos políticos...

Na contramão: uma mãe em busca do paradeiro de seu filho, se infiltrando numa fazenda e se aproximando dos "inimigos" pela esperança do reencontro.

Trama muito boa e construída equilibradamente. Atuação de Dira Paes à altura da personagem. 

Talvez pudesse ter um trabalho a mais em alguns diálogos, que às vezes parecem esquemáticos demais (como nas cenas em Brasília), o mesmo nas interpretações.

Mas essas "impurezas" não comprometem a experiência emocionante do filme.

Filme necessário para os dias de hoje no Brasil. Pela luta e pela esperança.

terça-feira, 12 de julho de 2022

Tudo em todo lugar ao mesmo tempo (Everything Everywhere All at Once ) - Dan Kwan & Daniel Scheinert

Filme bastante interessante, com uma premissa atual, distopia abordando o ser e estar contemporâneo: real X irreal ou virtual e a maneira como entram os afetos dentre tantas outras demandas em nossas vidas.

Pode-se pensar numa mistura de Matrix com linguagem tarantinesca, ou mesmo em aspectos filosóficos de Michel Gondry e narrativas como Brilho eterno de uma mente sem lembrança ou mesmo a série Kidding e certamente com muitas outras referências pop das quais muitas me escapam.

Porém onde está o grande potencial do filme é também onde há uma dispersão: são tantas referências, tanta colagem, tantas linguagens que o filme se excede.

Fica cansativo e não apenas por seus 140 minutos, mas também pelo ritmo frenético e pelo excesso de tudo. Ainda mais sem que haja uma base forte para a costura. Não há personagens tão densos para nos identificarmos e que ancorem tantas cenas de disputa, luta, transições de tempo e espaço.

Vira um espetáculo desse frenesi. Talvez de muito sucesso para um certo público, mas menos universal do que poderia.




sexta-feira, 24 de junho de 2022

Medida provisória - o filme - Lázaro Ramos

 Ótimo filme. Necessário para os tempos de hoje.

Não só pela semi-distopia descrita em que uma medida provisória determina que os afrodescendentes sejam enviados de volta à África, "higienizando" o Brasil, mas pelo filme cheio de qualidades.

Pelo frescor de uma direção que mistura tons, gêneros, ritmos (ora mais cômica, ora mais dramática, ora mais intimista, ora mais épica), que inclusive às vezes também dificultam nossa imersão (se estamos no drama as piadas podem parecer excessivas, se estamos no realismo certas interpretações mais empostadas podem nos distrair um pouco).

Seja como for o filme tem uma premissa pulsante, um roteiro bem construído, interpretações excelentes, uma ótima fotografia e uma trilha sonora vigorosa.

O filme se faz épico e coloca sua trama contextualizado na história, não à toa termina com cenas e personagens documentais, nos situando e também nos implicando.


Excelente estreia de Lázaro Ramos na direção, vida longa a essa nova carreira!